Por João Sousa
Parte II da série sobre o Barão de Mauá
Parte I - A Amazônia e a integração nacional
O termo “empresário manchesteriano” se refere ao tipo de empresário associado à época da Primeira Revolução Industrial, cujo modelo produtivo também é chamado de Sistema Manchesteriano em referência à cidade onde foi implementado: Manchester. Assim sendo, o sistema produtivo manchesteriano é marcado por produção em massa e centralizada, divisão de trabalho, alto nível de mecanização e da dependência de oferta de mão de obra barata para ganhos de escala, anterior ao Fordismo e Taylorismo. Desse modo, entende-se que o empresário manchesteriano seria defensor ávido do laissez-faire, isto é, da pouca participação do Estado nas atividades econômicas e do livre mercado. Desse modo, ao se considerar a formação pessoal, intelectual e laboral e a atuação político-empresarial do Barão de Mauá, pode-se afirmar sem sombra de dúvidas que Irineu Evangelista foi um empresário, financista e industrialista aos moldes manchesterianos no Brasil? Destarte, partindo do ponto de vista do “empresário manchesteriano” ideal – ou comumente entendido, o Barão de Mauá não pode ser entendido como tal tipo de empresário. Isso fica claro conforme constatação de Berteiro (2005):
Mauá foi o financiador da guerra uruguaia em uma decisão que, podemos dizer, foge bastante do comportamento esperado de um empreendedor. Ele adentrou nessa guerra, esperando conseguir aproximar-se de D. Pedro II e, desse modo, colher os favores e privilégios que desfrutavam aqueles que estavam sob as asas protetoras do imperador. Novamente, o que vemos é uma postura que não condiz com a tão propalada independência e altivez do Barão em face da visão do Império brasileiro. Assim, não se pode afirmar que Mauá não agia com a mesma reverência ao governo como os comerciantes portugueses ou os fazendeiros e traficantes brasileiros. Também não podemos ratificar totalmente a idéia de Mauá como praticante ortodoxo do livre mercado e avesso aos privilégios políticos e legais, vistos como entraves ao desenvolvimento e diminuidores da eficiência de mercado. (P. 13-14, BERTEIRO, 2005)
Além disso, as próprias condições materiais, institucionais e políticas do Brasil Império corroboram a isso. A princípio, não havia o mercado de trabalho necessário para os empreendimentos industriais de Mauá, haja vista que a base da economia brasileira ainda era escravista. Em segundo lugar, não havia mercado interno de tamanho minimamente significativo para a produção e venda de manufaturas, não por acaso o principal cliente das empresas de Irineu foi o Estado brasileiro e cujas funções eram orientadas ao fornecimento de serviços, como logística, transporte e iluminação. Em poucas palavras, onde não havia mercado interno demandante e mercado de trabalho constituídos seria impossível a implementação de um sistema produtivo à la Manchester.
Entretanto, se as condições materiais vigentes no Brasil não permitiam semelhantes empreendimentos aos encontrados no coração industrial da Inglaterra, ao menos no campo das ideias o Barão de Mauá defendia a viabilização dessas condições, a começar pela abolição da escravidão e pela formação de um mercado de trabalho que ofertaria a mão de obra necessária para a produção e consumo dos itens provenientes das indústrias nacionais, questão muito bem elaborada por Celso Furtado no capítulo XXIV de “Formação Econômica do Brasil” . Além disso, como apontam Gambi e Consentino (2020) sobre o posicionamento de Irineu acerca do debate sobre moeda e crédito, Mauá possuía de fato ideias liberais, porém ajustadas ao contexto brasileiro:
Na literatura, Mauá é visto frequentemente como industrialista. Contudo, a documentação analisada revela que, em sua visão, a chave para solucionar os problemas da economia brasileira à época não se resumia à indústria, mas ao aumento da produção em geral, especialmente a agrícola, e no desenvolvimento do comércio, atividades mais condizentes com as circunstâncias do país. A produção era a base do valor da moeda inconversível e o determinante do câmbio. [...] Vale lembrar que o termo indústria referia-se a qualquer produção e não especificamente à industrial. Em momento algum fica clara a defesa da industrialização do país, apenas o estímulo à criação de indústrias que conseguissem sobreviver sem auxílio governamental, bem ao gosto liberal. (P. 17, GAMBI & CONSENTINO, 2020)
A trajetória individual de Irineu Evangelista de Sousa, particularmente sua formação como comerciante, foi moldada pelos ensinamentos práticos de seu tutor português e pelo projeto educacional promovido por seu tutor escocês. Este último, por sua vez, adaptava o “estilo britânico” de condução de negócios às especificidades do contexto brasileiro, considerando que Richard Carruthers residia no Brasil e mantinha relações comerciais com negociantes... brasileiros.
Por fim, vale apontar que o próprio conceito de “empresário manchesteriano” carrega um significado particularmente ideológico – não necessariamente correspondente à realidade, haja vista que mesmo no contexto da Revolução Industrial na Inglaterra, os empresários buscavam proteger o mercado nacional por meio de leis protecionistas e, mais ainda, necessitaram da formação do mercado de trabalho promovido pelo Estado por meio das Enclosures Acts, Poor Law Amendment Act, Factory Acts entre outras, como bem demonstra Karl Polanyi nos capítulos XVI a IX de “ A Grande Transformação” . À exemplo disso, aponta Polanyi:
Também na Inglaterra, o laissez-faire recebeu uma interpretação estreia: significava retirar as regulamentações da produção, sem incluir o comércio. [...] O protecionismo era tão arraigado que os fabricantes de algodão de Manchester exigiram, em 1800, que a exportação de fios fosse proibida, apesar de saberem que isso significaria a perda de negócios para eles. Uma lei aprovada em 1791 estendeu à exportação de modelos ou de especificações dos tecidos as punições previstas para a exportação de ferramentas usadas na manufatura de produtos de algodão. O livre-comércio na origem da indústria algodoeira é um mito. (P. 212, POLANYI, 2021)
No entanto, uma análise mais aprofundada sobre o próprio conceito de “empresário manchesteriano” exigiria um estudo próprio, visto que essa discussão envolve questões complexas relacionadas à formação do capitalismo no contexto pré-revolução Industrial inglesa. Portanto, este texto não tem a intenção de se debruçar sobre esses aspectos, mas apenas de destacar que a figura do “empresário manchesteriano” nesse sentido é mais uma construção ideológica do que uma representação fiel da realidade histórica.
Afinal, no caso do Barão de Mauá, trata-se de um empresário... brasileiro.
BERTEIRO, C. O. & IWAI, T. Uma visita ao Barão. RAC: Revista de Administração Contemporânea, v. 9, n. spe2, p. 1–17, 1 jan. 2005. BESOUCHET, L. Mauá e seu tempo. Editora Nova Fronteira, 1978. CALDEIRA, J. Mauá. Empresário do Império. Companhia Das Letras, 1995. ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Industrial Revolution. Disponível em: https://www.britannica.com/event/Industrial-Revolution. Acesso em: 26 nov. 2024. ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Manchester. Evolution of the modern city. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Manchester-England/Evolution-of-the-modern-city. Acesso em: 26 nov. 2024. ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. The first Industrial Revolution. Disponível em: https://www.britannica.com/event/Industrial-Revolution/The-first-Industrial-Revolution. Acesso em: 26 nov. 2024. FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Das Letras, 2008. GAMBI, T. F. R.; COSENTINO, D. D. V. As ideias econômicas de Mauá e o liberalismo nos trópicos (1860-1878). América Latina en la Historia Económica, v. 27, n. 1, p. 1014, 13 set. 2019. MARCOVITCH, J. Pioneiros e empreendedores: a saga do desenvolvimento no Brasil. Vol. 2., p. 27-62. São Paulo, Ed. Usp, Univ. De São Paulo, 2005. POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas de nossa época. Rio De Janeiro: Contraponto, 2021. THE GUARDIAN. Cotton Capital: how slavery made Manchester the world’s first industrial city. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/ng-interactive/2023/apr/03/cotton-capital-how-slavery-made-manchester-the-worlds-first-industrial-city. Acesso em: 26 nov. 2024.
¹FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. P. 198-205. São Paulo: Companhia Das Letras, 2008.
²POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas de nossa época. P. 139-180 Rio De Janeiro: Contraponto, 2021. João Eduardo do Rosário M. B. Sousa. Nascido em São Félix, Bahia, João é graduando no Instituto de Relações Internacionais na USP, pesquisador e entusiasta sobre a história do desenvolvimento econômico e industrial do Brasil, com experiência no Mercado Financeiro.
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Foto: Anderson Cardoso
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